quinta-feira, 31 de julho de 2008

Mudança Tardia, Ainda que Necessária.

Já é tarde.
Estou há cerca de 30 horas vendo as sombras das luminárias dos carros que passam e refletem suas marcas na cortina do meu quarto.
Não entendo, mas o sono realmente não vem.

Repouso meu queixo em minhas mãos e aguardo outra luz.
Além da fumaça dos quase 70 cigarros que já fumei, há uma fresta na porta da geladeira que vez ou outra se faz de caminho para as baratas visitantes que digladiam por um pedaço de comida velha. E olha que resto velho é o que realmente não falta em minha casa.

Estou sujo.
Minhas axilas cheiram a desodorante vencido de décima oitava categoria. Até porque, fiz questão de deixar um ao meu lado para precaver caso começasse a feder suor. E o resultado foi pior: agora estou fedendo a suor e aromas baratos que me lembram aqueles bordéis velhos de esquinas escuras, com prostitutas pernetas e velhas desdentadas oferecendo serviços especiais a preços promocionais.
- Ao menos estou inspirado.

É noite.
Percebo isso pela definição das projeções das pessoas na parede em que minha mesa, ou o que sobrou dela depois da última queda, fica encostada para não cair.
Deixe-me explicar a última queda: as lâmpadas da minha casa foram todas mal instaladas, e, conseqüentemente, têm uma dificuldade imensa em acender. Para que isso aconteça, preciso sempre subir em um banco, cadeira, ou mesmo na mesa, para segurar na lâmpada e com a outra mão tocar a parede; dessa forma faço um processo de aterramento improvisado. Parece ridículo, mas funciona muito bem. Enfim, logo que cheguei, noite passada, subi à mesa para pôr em prática meu ritual de iluminação de ambientes e caí, junto com a mesa, estatelado no chão. Levantei-me dolorido, rindo, e ela quebrou uma perna.
Coitada, vai ficar escorada por um bom tempo.

Levanto-me, subo na cadeira e me estico todo até alcançar a lâmpada. Em menos de três segundos a cozinha e a sala estão iluminadas.
Sim, eu sei, elas não são separadas. Eu mesmo derrubei as paredes, com exceção das do quarto e do banheiro, para que todos os cômodos da casa fossem interligados. Diga-se de passagem, isso facilita a limpeza também.
Vou ao banheiro e tomo uma boa ducha de água fria. Ducha. Bem, pelo menos esse é o nome do chuveiro: “Ducha Power Shower 2000”. De power só o nome e o consumo de energia. Além de fria, a água cai em pingos esparsos que me esgueiro como que dançando tentando me enxaguar.

Roupas.
Pelo menos isso é razoavelmente organizado.
As sujas estão no chão, as limpas todas no cabideiro que coloquei na parede.
- Hm. Acho que não estão mais organizadas.
Cheiro algumas camisetas, como que lembrando hábitos antigos de amigos meus, e descubro entre elas uma que não está apodrecida pelo mofo. Dou um banho de perfume, caro pelo visto, na camiseta, e me preparo para sair.
- Esse aroma me lembra alguém.

Saio na rua e, conforme as reações das pessoas que me vêem, tenho a certeza de que meu semblante está péssimo. Entro no mercadinho da esquina, velho, porém limpo, e sorrio para a senhora do caixa. Ela, convalescida com meu rosto, me oferece um café e pergunta em que pode me ajudar.
- Pão de queijo, coca-cola e quatro carteiras de Camel. Por favor.
Sorrio realmente grato pelo pouco de atenção sincera que ela desprendeu a mim, e vou-me embora satisfeito em saber que a falsidade comercial sempre me agrada.
- Adoro conversar com quem sabe negociar.

Vou ao ponto de ônibus, e saboreio os borrachudos pães de queijo intercalados por longos goles de refrigerante gelado. Meus dentes doem um pouco, mas meu estômago, revoltado a princípio, acaba me agradecendo muito.
Alguns arrotos depois, eu acendo meu primeiro cigarro da noite.
- Hoje eu acho que vou longe.

Desço, quarenta e cinco minutos depois, e atravesso a rua sorrindo.
No bar estão vários amigos de longa data que me saúdam espalhafatosamente. Eu respondo à altura, e me divirto muito com este fato.
Entramos todos sorrindo, e brindamos aos bons tempos que passamos juntos. As festas, a faculdade, os acampamentos, casamentos e reuniões. Lembramos de momentos bons e ruins enquanto o álcool começa a fazer efeito.
Jogo sinuca como não jogava há anos, e sinto-me muito bem por ter saído de casa por pelos menos alguns instantes. Meus cigarros se tornam motivo de convivência, e acho que nunca cumprimentei tantos jovens viciados em tão pouco tempo.
- Opa! Camel! Arranja um p’ra mim aí meu!
- Claro, ‘tá na mão!

Bêbado, rouco, com os cabelos exalando a fumaça, desço até o centro para esperar o coletivo. Para minha sorte, vários dos meus comparsas ainda dependem do transporte urbano.
Sentamo-nos todos na calçada e comemos um lanche barato, gorduroso e fantasticamente bom, enquanto gastamos nossos últimos trocados com cervejas em uma loja de conveniências.
Algumas horas e os heróis vão tombando. O sono, o cansaço e a certeza de que a rotina vai voltar instauram em todos um silêncio crescente. Um a um vão-se embora, inclusive eu.

No ônibus eu vou sorrindo, lembrando do quanto somos considerados grandes perante os novos.
Tanto tempo gasto juntos, tantas histórias, tantas vitórias e derrotas dentro de um meio de ideais complicados, complexos e às vezes até fúteis, que fazem com que as pessoas nos admirem. É estranho, e até engraçado, fazer parte da pequena história da vida de alguém.
- Pelo menos nos próximos cinco anos eu sei que ainda lembrarão-se de nós. Depois o ciclo continua, e com certeza seremos os velhos esquecidos, ou considerados traidores da causa simplesmente por termos envelhecido e nos acomodado.
- Como é moço?
- Nada não, desculpe: Estava pensando alto.

Em casa vejo meu destino. Fadado ao fardo de não poder fugir, eu abro as portas do meu inferno pessoal. Adentro o curtume de meu escalpe em silêncio, e a chibata grita em lembrança do meu coro. Tomo outro banho, e a ressaca me tomba por cinco minutos enquanto estou debaixo d’água. Seco-me ressabiado, e visto meu traje de escravo honesto.

Calça, camisa e gravata.
Agora sou parte da sociedade infame que teme tanto meus costumes mal quistos. Pego minha pasta, retiro da geladeira uma maçã, por sorte ainda boa, lavo-a e saio comendo.
Escritório adentro, somente sementes de discórdia comercial. Não discuto, não renego, apenas mantenho minhas palavras enquanto muitos se revoltam com minhas decisões.
Não sou chefe, não sou dono, mas sou respeitado apesar das discrepâncias.

Ganho pouco e faço muito. Se não recebo aumentos é porque não me curvo às necessidades corruptas de crescer à custa dos outros. Alguns cresceram dessa forma, e ainda assim me respeitam muito. Talvez pelo tempo que estou aqui, ou por saberem que sou incorruptível.
Meu estômago ronca algumas vezes, e na terceira ouço a secretária contendo o riso. Entro na brincadeira, estapeio minha barriga e reclamo a responsabilidade por meus trovões esfaimados. Sorrimos, conversamos balelas triviais sobre o fim de semana e retornamos a nossos postos como que casados mal amados em silêncio após a cópula descontente.

Compadeço enquanto aguardo o horário do fim da labuta.
É insuportável, é destruidor ser parte de tamanha chaga no fomento da democracia. Mas sou, e sem orgulho algum eu volto pra casa.

Durmo como criança até as 2 horas da madrugada. Levanto e saio para passear.
O tempo passa em meio às arvores, e minhas raízes estão todas enrugadas, cheias, estressadas.
- Amanhã me demito.

Amanhece e vou para a empresa.
Admito até ter ficado surpreso com a comoção de meus colegas quando anunciei que estava saindo. Após 21 anos de trabalho dedicado, meu chefe sentiu-se praticamente traído e relutou a aceitar minha demissão.
- Tire férias, mas não saia da empresa. Sessenta dias, que tal?
- Ok, boa proposta. Quando eu voltar conversaremos de novo. Sete anos sem férias, vai ser bom mudar um pouco de ares.

Em dois dias estou em outro estado, cercado de pessoas conhecidas e que não tenho a mínima noção de quem realmente são. Sei seus nomes, até os conheci bem há quinze anos.
- O tempo passa para alguns de nós. E para alguns desses alguns, passa ainda mais rápido.
Festas, comilança, fartura. E o que realmente não falta é falsidade.
Saio da casa de alguns parentes com a certeza de que a instituição família é uma merda, que grande parte do que me perguntaram será motivo de chacotas e fofocas por pelo menos uma semana.
- Ao inferno.

Volto pra casa após três semanas, certo de que teria aproveitado muito mais se não tivesse viajado.
Pego o que me resta de dinheiro, que apesar do sufoco não é pouco, e invisto.
Um bar modesto, em um bairro próximo ao centro, e quem sabe meu futuro esteja um pouco menos turvo.
Abro-o sem muitos preparativos, com a intenção de que seja uma casa para companheiros e comparsas. Na inauguração, uma semana após ter chegado, cerca de 80 pessoas me deram o privilégio de sua presença. E admito que eu e meus 3 funcionários ficamos surpresos com o movimento.
Cerveja, comida e sinuca são dispensadas naquela noite em que decidi mudar o rumo da minha vida.
Muito trabalho, muitas despesas, e a certeza de que pouca coisa vai mudar.
Pelo menos agora faço o que gosto.

Tenho dormido bem. Pouco, mas bem.
O bar está cada vez melhor, e já comprei a casa ao lado para montar um palco fixo. Vai ser uma pequena casa de shows, aquela história de pequenos pubs com bandas. Dá pouco lucro, mas muita alegria.
E assim eu vou.


Ankh
20-10-2004


obs.: ontem foi uma boa noite entre amigos. Reli este texto, ao acaso, e decidi postar.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

There and Back Again.







Foto (cropada e roubada) by Thais Julianne

Não sou bom em solilóquios, acredito que nunca o tenha sido.

A idéia do surgimento deste vem de encontro com a necessidade de retomar o processo escrito - seja pelo incentivo de meus bons amigos, seja pela satisfação em demonstrar em letras o que meu verbo nem sempre condiz - e, em suma, produzir.
O processo criativo.
(Criar?)
Reciclar idéias, renovar conceitos, buscar respostas através do questionamento auto-indutivo, incentivar pela escrita o fim da omissão enquanto ser humano consciente.
Tendencioso talvez, sincero sempre.

Finalizando este preâmbulo:
- Oi, olá, seja bem-vindo. Não espere palavras suaves.
A verdade é bela, mas costuma doer - mesmo em ficção.