sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Vociferando a noite à forra







De mãos e olhos trêmulos, observo a vida passar.
Mais uma noite, outra tormenta insone aguarda a mente fervilhante que, de tudo o que fez, nada consegue manter doravante. O travesseiro é esguio, bravio e relutante. Dá tapas e coices, morde e belisca. Arisco.

Levanto, pego um copo de café e vou à rua.
O abrigo dos boêmios, a efemeridade ébria da insegurança de passear por pátios e espaços vazios, a vontade solitária de encontrar companhia onde só há lamúrias, tormentas e vociferações incongruentes. Caminhar na noite só, sob a sombra de prédios sujos, sobre a terra dos dias mal-fadados.

Conto os passos.
Conto as divisões da calçada.
Conto os fuscas que passam pela rua. E para o horário, realmente, não são poucos.
Lembro da brincadeira infante de contar marcas e modelos. Penso nas pessoas que já me fizeram parceria de trabalho e farra, de forra e angústia.

Passeio.
Pé ante pé.
Um passo de cada vez.
E várias outras mensagens belas passam por meu cérebro enquanto sorrio.
- Auto-ajuda é a puta que o pariu.

Sem saúde, sem dinheiro, com vários planos mal produzidos, vivendo a vida dos outros para agradar aos olhos sabe-se lá de quem. Eu? Não. A realidade condiz como carapuça para a maioria dos que conheço. Trabalhando onde não gostam, infelizes em relacionamentos que possuem tudo para da certo, satisfeitos apenas com detalhes infernalmente imbecís. Da posse à possessividade, penso no projeto augusto de viver em paz. Se é que há.

Nada me tira da mente um vislumbre vertiginoso de uma história em quadrinhos na qual o anti-herói passa grande parte do tempo elucubrando todos os erros da humanidade e resolvendo, de forma catastrófica, os problemas dos outros. Sua sina é a má sorte, para a sorte dos outros. Em seu caminho, fogo e ferro forjaram fracassos e vitórias.

Ao amanhecer a luz crepuscular dá tons de inconsistência à realidade. A canção da vida, a beleza dos raios refletidos nos vidros das janelas, contrastando o céu e as muralhas humanas. O dia chega com a canção do renascer, do despertar do mundo. E toda ladainha bela que possa agradar ouvidos frágeis que mal sabem descrever o resultado de outro ciclo que se fecha. Um ano velho morre, uma jovem nova vive. É justo.

Pelas nove da manhã retorno da brevidade de meus sonhos de grandeza, admirando a cidade sentado à sarjeta, vendo-a pelos ângulos menos nobres, porém com toda a resignação das pessoas meramente instruídas, metidas, que acreditam piamente na superioridade de seu conhecimento. E riem! Carros, cores, pessoas. Não vejo nada além da rotina, e procuro onde fica o pequeno ícone de integração que perdi pelo caminho.

Caminho.
Sempre chega um tempo em que os sonhos de infância se tornam velhos, bobos; que os sonhos de adolescência se tornam coisas da juventude, passado. E para onde vão os olhos brilhantes de todos aqueles jovens que buscaram algo que acreditavam? E do que é feito o caráter dos adultos, senão dos anseios dos tempos já vividos?

Uma senhora passeia com seu cachorro.
Vários e vários casais, solteiros e largados praticam esportes matinais. Todos no mesmo ciclo e ritmo, sem sequer olhar um no rosto do outro. Óculos escuros às seis e quinze da manhã, fones de ouvido. Cada um em seu mundo, em uma vida de tantas vitórias que não se sabe onde foi que se tornaram líderes de seus próprios egos. Cooper, casa, café, trânsito, trabalho, almoço. Alvoroço. Trânsito, trabalho, café, casa. Casal. Silêncio defronte o altar mor da vida adulterada pelos conceitos da ignorância auto-afirmada: durante a novela, só se vai ao banheiro nos intervalos comerciais.

Dou mais alguns passos. Não sei quanto andei.
Em uma praça qualquer, compro dois pães de queijo e um café. Doce, requentado. Deve ter sobrado de ontem. Mas o calor no estômago é reanimador. Revigorado, penso se devo continuar sendo verbalmente atroz com todo e qualquer transeunte citadino. Nunca fui paladino. Resolvo que o tempo de pensar já é escasso, e fracasso em argumentar com minha consciência remotamente desperta.

Aceno.
Subo ao ônibus. Sento. Sacolejo. Desço.
Em casa, o travesseiro aguarda. Vou ter que justificar cada pensamento maldito, cada julgamento indevido.
- Merda. Esqueci de comprar pão.

Ankh
15-01-2010
Insone. De novo. Até quando?

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

(descrição do) Interlocutor

Nunca foi anjo.
É banjo.

Fala, grita, canta desafinado.
Se descuida, arrebenta cordas.
Se sorri, perde a oportunidade de ficar calado.

Um momento transeunte
Na sarjeta fantasia o tempo de alaúde
Já não tem tanta harmonia
Não procura valia

Perde o tom com facilidade
É parceiro da verdade
Mas não tem ritmo:
Digladia com a pauta até o fim.

Ankh
06-01-2009
Neste início de ano ouvi palavras que me fizeram pensar que muito vale a pena. Muito.
Obrigado, Mr. André Salvador.